
“Ainda estou aqui” foi uma estrela na noite do Oscar, com todo seu Glamour e tapetes vermelhos. Um filme premiado e de atuações memoráveis. Coisa linda de se ver como brasileiro. O reconhecimento é merecido, ainda que numa cerimônia historicamente enviesada na presunção americana e seu complexo de importância.
Não quero criticar o filme, que traz a temática atual do golpe militar, que ainda nos persegue em uma onda autoritária que assombra o mundo. Ela é extremamente necessária. Mas preciso expor um desconforto que senti quando assisti ao longa metragem.
Eunice é a patrona, o cerne da família Paiva, que expõe uma tradicional família de classe média alta no Rio de Janeiro. Uma cultura de família, que mesmo estando ao lado esquerdo do espectro político, vem enraizada de classismos e estruturas do que há séculos foi se construindo no Brasil. O papel de Zezé, a empregada da família, prontamente me fez refletir sobre a estrutura familiar em questão. Zezé era uma trabalhadora a serviço dos Paiva, que tinha seu quartinho, e trabalhava incansavelmente para o bem-estar de todos. Sua vida era cuidar da família. É muito triste o que tudo isso representa, apesar de compreensível na cultura de uma família rica naquele tempo.
Minha reflexão entra no pensamento progressista. Eu entendo que é preciso uma ruptura grande para visualizar, quando imerso nessa exploração culturalmente aceitável e até celebrada, de que há uma trabalhadora, de igual dignidade à Eunice Paiva, que tem direito a individualidade, que tem direito a desenvolver uma trajetória rica, de livre escolha, e que de maneira nenhuma deva apenas servir a seus patrões.
Minha crítica está na estrutura da família brasileira com um ordenado mais alto. Na normalidade de ter um trabalhador a serviço exclusivo para manter essa estrutura. Há alguns anos, houve avanços consideráveis nessa área: o quartinho da empregada foi eliminado, a profissão foi regulamentada, pode haver a contratação CLT, entre outras. Em 2015, em “Que horas ela volta?”, essa mudança foi retratada nos cinemas, estrelado pela Regina Casé. Um filme muito bonito, que relata a emancipação de Val (Regina Casé), a empregada, completamente submissa a toda situação. Comprometida com a ideia de “as coisas são como são”. A filha, crescendo longe da mãe, quando em contato com a realidade, já não aceita tal condição. O desenrolar do roteiro traz momentos críticos e emocionantes.
A sociedade brasileira é extremamente classista e há um ar de superioridade daqueles que tem um pouco mais para aqueles que estão a seu serviço. Há sociedades em que esta distinção não é um abismo como aqui.
Eu gosto da palavra dignidade. E gostaria que houvesse uma ditadura da dignidade, onde todos, com seus diferentes papéis na sociedade sejam igualmente respeitados e admirados.
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